Robespierre
Ele caiu por causa do confisco dos bens dos adversários da Revolução e da sua distribuição gratuita entre os proletários.
As leis agrárias aterrorizavam bem mais que a guilhotina.
Começou cedo a transformar-se em máscara ou marionete. Primeiro, o monstro. O Terror Branco, com seus massacres, fixou sua fisionomia. Depois, sobreveio o espectro também para os tardios herdeiros dos Jacobinos. "Robespierre está perambulando" - der Robespierre geht um - era o refrão dos proletários de Estrasburgo, do fim do século passado. A caricatura do Incorruptível, do gélido racionalista, do ideólogo fanático, já estava feita nos anos do Império.
A capacidade de reduzir a história ao melodrama não cabe apenas em um século de filmes, através de todas as nuanças do sórdido, até o Danton de Wajda. Deu-se também através da leitura poética (traidora da paixão revolucionária das suas cenas ferozes) de A Morte de Danton, de Georg Bucbner, 1830. Pelo menos, os estudantes neonazistas alemães que, por volta de 1950, impediram uma encenação de A Morte de Danton, tinham compreendido de que se, tratava. Desde então a máscara de Danton, com a sua "sanguínea humanidade", corno ainda hoje se escreve, funciona como antítese simbólica, para muitos usos, para aquela de Robespierre - o reprimido, o sádico, o glacial amante da virtude, dominado e seduzido pelo "atroz e teatral" Saint-Just, como o chamou Chateaubriand (ao qual não faltava, tem de ser dito, o sentido dos adjetivos).
Danton, a mão sobre o peito, conclama às armas da sua estátua no boulevard, como a Marselhesa no Arc de Triomphe. Robespierre não possui em Paris nem pedra nem palavra. No Hotel de Noubise, há apenas uma folha de papel com a sua assinatura interrompida por uma mancha cor de ferrugem, o sangue da malograda tentativa de suicídio, na noite de 28 de julho de 1794. Naquela extraordinária aula de anatomia óssea que é a história da Revolução, prestando-se atenção à noção pouco usada da contradição dialética, daria para compreender por que os operários e os artesãos foram relativamente indiferentes à queda de Robespierre. Releio no velho Mathiez: "Os termidorianos, prisioneiros da reação, serão cedo levados mais longe de quanto acreditavam e muitos deles se arrependerão na velhice de terem participado de 9 Termidor. Matando Robespierre, eles mataram, por um século, a República democrática. Robespierre foi um exemplo memorável dos limites da vontade humana contra a resistência das coisas."
Abro os jornais, ligo a tevê. Quantos rostos de nossos pequenos termidorianos de uma revolução inexistente. E os comunistas que se envergonham de Lênin, curvados do reconhecimento das belas almas liberais.
Robespierre caiu pelos decretos de Ventoso (março de 1794), ou seja, pelo projeto de confisco dos bens dos adversários da Revolução e da sua distribuição gratuita para o proletariado revolucionário. As "leis agrárias" aterrorizam bem mais que a guilhotina. Era uma visão além de cada realidade possível. Saint-Just e Robespierre avançavam, como as "kantianas idéias da razão", no vazio. Deviam cair. Mas daquele ponto surgiriam o verão de 1848, a primavera de 1871, o abril e o outubro de 1917, as guerras de libertação anticolonialista. Cada revolução, antes de ser varrida, acende-se por um instante para iluminar as razões daquela que virá. Assim foi com Lênin e com Mao. E possivelmente acontece com cada existência individual. Com você, que agora está sorrindo; comigo. Isto, e nada mais, me diz o nome de Robespierre, se o pronuncio.
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FRANCO FORTINI
Pseudônimo de Franco Lattes. Poeta, contista e critico italiano. Tradutor de Goethe e Proust
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